segunda-feira, 31 de agosto de 2015

PARA LER EM 2050 - Boaventura de Sousa Santos

16/08/2015 - Copyleft BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS Para ler em 2050 É estranho que uma época que começou como só tendo futuro tenha terminado como só tendo passado. Quando um dia se puder caracterizar a época em que vivemos, o espanto maior será que se viveu tudo sem antes nem depois, substituindo a causalidade pela simultaneidade, a história pela notícia, a memória pelo silêncio, o futuro pelo passado, o problema pela solução. Assim, as atrocidades puderam ser atribuídas às vítimas, os agressores foram condecorados pela sua coragem na luta contra as agressões, os ladrões foram juízes, os grandes decisores políticos puderam ter uma qualidade moral minúscula quando comparada com a enormidade das consequências das suas decisões. Foi uma época de excessos vividos como carências; a velocidade foi sempre menor do que devia ser; a destruição foi sempre justificada pela urgência em construir. O ouro foi o fundamento de tudo, mas estava fundado numa nuvem. Todos foram empreendedores até prova em contrário, mas a prova em contrário foi proibida pelas provas a favor. Houve inadaptados, mas a inadaptação mal se distinguia da adaptação, tantos foram os campos de concentração da heterodoxia dispersos pela cidade, pelos bares, pelas discotecas, pela droga, pelo facebook. A opinião pública passou a ser igual à privada de quem tinha poder para a publicitar. O insulto tornou-se o meio mais eficaz de um ignorante ser intelectualmente igual a um sábio. Desenvolveu-se o modo de as embalagens inventarem os seus próprios produtos e de não haver produtos para além delas. Por isso, as paisagens converteram-se em pacotes turísticos e as fontes e nascentes tomaram a forma de garrafa. Mudaram os nomes às coisas para as coisas se esquecerem do que eram. Assim, desigualdade passou a chamar-se mérito; miséria, austeridade; hipocrisia, direitos humanos; guerra civil descontrolada, intervenção humanitária; guerra civil mitigada, democracia. A própria guerra passou a chamar-se paz para poder ser infinita. Também a Guernika passou a ser apenas um quadro de Picasso para não estorvar o futuro do eterno presente. Foi uma época que começou com uma catástrofe mas que em breve conseguiu transformar catástrofes em entretenimento. Quando uma catástrofe a sério sobreveio, parecia apenas uma nova série. Todas as épocas vivem com tensões, mas esta época passou a funcionar em permanente desequilíbrio, quer ao nível coletivo, quer ao nível individual. As virtudes foram cultivadas como vícios e os vícios como virtudes. O enaltecimento das virtudes ou da qualidade moral de alguém deixou de residir em qualquer critério de mérito próprio para passar a ser o simples reflexo do aviltamento, da degradação ou da negação das qualidades ou virtudes de outrem. Acreditava-se que a escuridão iluminava a luz, e não o contrário. Operavam três poderes em simultâneo, nenhum deles democrático: capitalismo, colonialismo e patriarcado; servidos por vários sub-poderes, religiosos, mediáticos, geracionais, étnico-culturais, regionais. Curiosamente, não sendo nenhum democrático, eram o sustentáculo da democracia-realmente-existente. Eram tão fortes que era difícil falar de qualquer deles sem incorrer na ira da censura, na diabolização da heterodoxia, na estigmatização da diferença. O capitalismo, que assentava nas trocas desiguais entre seres humanos supostamente iguais, disfarçava-se tão bem de realidade que o próprio nome caiu em desuso. Os direitos dos trabalhadores eram considerados pouco mais que pretextos para não trabalhar. O colonialismo, que assentava na discriminação contra seres humanos que apenas eram iguais de modo diferente, tinha de ser aceite como algo tão natural como a preferência estética. As supostas vítimas de racismo e de xenofobia eram sempre provocadores antes de serem vítimas. Por sua vez, o patriarcado, que assentava na dominação das mulheres e na estigmatização das orientações não heterossexuais, tinha de ser aceite como algo tão natural como uma preferência moral sufragada por quase todos. Às mulheres, homossexuais e transsexuais haveria que impor limites se elas e eles não soubessem manter-se nos seus limites. Nunca as leis gerais e universais foram tão impunemente violadas e selectivamente aplicadas, com tanto respeito aparente pela legalidade. O primado do direito vivia em ameno convívio com o primado da ilegalidade. Era normal desconstituir as Constituições em nome delas. O extremismo mais radical foi o imobilismo e a estagnação. A voracidade das imagens e dos sons criava turbilhões estáticos. Viveram obcecados pelo tempo e pela falta de tempo. Foi uma época que conheceu a esperança mas a certa altura achou-a muito exigente e cansativa. Preferiu, em geral, a resignação. Os inconformados com tal desistência tiveram de emigrar. Foram três os destinos que tomaram: iam para fora, onde a remuneração económica da resignação era melhor e por isso se confundia com a esperança; iam para dentro, onde a esperança vivia nas ruas da indignação ou morria na violência doméstica, no crime comum, na raiva silenciada das casas, das salas de espera das urgências hospitalares, das prisões, e dos ansiolíticos e anti-depressivos; o terceiro grupo ficava entre dentro e fora, em espera, onde a esperança e a falta dela alternavam como as luzes nos semáforos. Pareceu estar tudo à beira da explosão, mas nunca explodiu porque foi explodindo, e quem sofria com a explosões ou estava morto, ou era pobre, subdesenvolvido, velho, atrasado, ignorante, preguiçoso, inútil, louco – em qualquer caso, descartável. Era a grande maioria, mas uma insidiosa ilusão de óptica tornava-a invisível. Foi tão grande o medo da esperança que a esperança acabou por ter medo de si própria e entregou os seus adeptos à confusão. Com o tempo, o povo transformou-se no maior problema, pelo simples facto de haver gente a mais. A grande questão passou a ser o que fazer de tanta gente que em nada contribuía para o bem estar dos que o mereciam. A racionalidade foi tão levada a sério que se preparou meticulosamente uma solução final para os que menos produziam, por exemplo, os velhos. Para não violar os códigos ambientais, sempre que não foi possível eliminá-los, foram biodegradados. O êxito desta solução fez com que depois fosse aplicada a outras populações descartáveis, tais como os imigrantes, jovens das periferias, toxicodependentes, etc. A simultaneidade dos deuses com os humanos foi uma das conquistas mais fáceis da época. Para tal bastou comercializá-los e vendê-los nos três mercados celestiais existentes, o do futuro para além da morte, o da caridade, e o da guerra. Surgiram muitas religiões, cada uma delas parecida com os defeitos atribuídos às religiões rivais, mas todas coincidiam em serem o que mais diziam não ser: mercado de emoções. As religiões eram mercados e os mercados eram religiões. É estranho que uma época que começou como só tendo futuro (todas as catástrofes e atrocidades anteriores eram a prova da possibilidade de um novo futuro sem catástrofes nem atrocidades) tenha terminado como só tendo passado. Quando começou a ser excessivamente doloroso pensar o futuro, o único tempo disponível era tempo passado. Como nunca nenhum grande acontecimento histórico foi previsto, também esta época terminou de modo que colheu todos de surpresa. Apesar de ser geralmente aceite que o bem comum não podia deixar de assentar no luxuoso bem estar de poucos e no miserável mal-estar das grandes maiorias, havia quem não estivesse de acordo com tal normalidade e se rebelasse. Os inconformados dividiam-se em três estratégias: tentar melhorar o que havia, tentar romper com o que havia, tentar não depender do que havia. Visto hoje, a tanta distância, era obvio que as três estratégias deviam ser utilizadas articuladamente, ao modo da divisão de tarefas em qualquer trabalho complexo, uma espécie de divisão do trabalho do inconformismo e da rebeldia. Mas, na época, tal não foi possível, porque os rebeldes não viam que, sendo produto da sociedade contra a qual lutavam, teriam de começar por se rebelar contra si próprios, transformando-se eles próprios antes de quererem transformar a sociedade. A sua cegueira fazia-os dividir-se a respeito do que os deveria unir e unir-se a respeito do que os devia dividir. Por isso, aconteceu o que aconteceu. O quão terrível foi está bem inscrito no modo como vamos tentando curar as feridas da carne e do espirito ao mesmo tempo que reinventamos uma e outro. Porque teimamos, depois de tudo? Porque estamos a reaprender a alimentar-nos da erva daninha que a época passada mais radicalmente tentou erradicar, recorrendo para isso aos mais potentes e destrutivos herbicidas mentais – a utopia.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

ARTIGO INTERESSANTÍSSIMO SOBRE O NARCISISMO, REDES SOCIAIS E EMPRESAS... : A praga do espelho - Thomaz Wood Jr.

A praga do espelho Revista Carta Capital - 05/08/2013 Thomaz Wood Jr. As manifestações recentes no Brasil trouxeram à tona frustrações e insatisfações. Elas também revelaram comportamentos narcisistas entre as hordas mais jovens que tomaram as ruas, armadas de smartphones, ávidas por registrar seus 15 segundos de fama nas mídias sociais. O fenômeno faz eco à constatação de diversos estudos científicos, de que vivemos sob o império de Narciso. Bill Davidow, em artigo publicado no website da revista norte-americana The Atlantic, em março de 2013, compilou estudos e declarações de especialistas em torno da magnitude da epidemia. Jean M. Twenge e W. Keith Campbell, autores do livro The Narcissism Epidemic, mencionam uma pesquisa com 37 mil estudantes universitários. Segundo o estudo, os traços de personalidade narcisista cresceram tanto quanto a obesidade nas últimas décadas. Shawn Bcrgman. professor de Psicologia, também constatou em pesquisas que o nível de narcisismo entre os jovens contemporâneos é mais alto do que nas gerações anteriores. Pesquisadores da Universidade de Western Illinois, mencionados pelo jornal inglês The Guardian, em artigo também de março de 2013, estudaram comportamentos associados ao narcisismo (como a vaidade, o senti mento de superioridade, o exibicionismo, o senso de merecer respeito e a tendência de manipular e tirar vantagens dos outros) entre 294 estudantes. O estudo revelou correlações positivas entre tais traços e os modos de uso do Facebook. Um trabalho de autoria de Jacqueline Z. Bergman, James W. Westerman e Joseph P. Daly, comentado nesta coluna há três anos, constatou: os estudantes universitários norte-americanos, especialmente os alunos dos cursos de Administração de Empresas, apresentam níveis de narcisismo próximos daqueles de estrelas de cinema e de músicos populares. Um estudo mais recente, também liderado por Bergman, constatou uma relação positiva entre narcisismo e materialismo: quanto maior o materialismo, menor a ética ambiental. Os jovens estão se tornando cada vez mais narcisistas e as mídias sociais provêm uma plataforma para suas exibições. Elas se transformaram em vitrines constrangedoras para manifestações narcisistas e comportamentos infantis. E os narcisistas parecem criar um padrão de comportamento para os demais, No centro da epidemia, a fotografia parece ter sido reinventada. Antes, uma foto podia ter a banalidade simpática de uma cena familiar, tocante por seu significado pessoal, ou a aura de um registro artístico, emocionante pelo objeto registrado ou por sua composição. O fotógrafo era o agente invisível, a equilibrar com maior ou menor talento sua imaginação e suas intenções com o mundo de movimentos, luzes e sombras à sua frente, Este escriba só tomou contato com a aparência física dos mestres Henri Cartier-Bresson e Robert Capa anos depois de começar a admirar suas imagens. Na era das mídias sociais, a fotografia parece ter se transformado em qualquer composição que inclua o fotógrafo: eu e meu gato, eu e meu risoto. eu no Taiti, eu na maratona... eu na Paulista! É o estranho mundo da iPhoto. Naturalmente, não se pode culpar exclusivamente as mídias sociais e os smartphones pela praga do espelho. A tecnologia garante o meio o induz a mensagem. mas a epidemia se deve também a questões relacionadas à educação e ao ambiente sociocultural. A permissividade dos pais e a satisfação imediata dos mais insípidos desejos das crianças a alimentam. Simultaneamente ,o pseudouniverso das celebridades faz o narcisismo parecer normal. transformando-o em modelo de conduta. Quais as consequências? Á autoconfiança e um grau “administrado” de narcisismo podem contribuir para aumentar a nossa iniciativa e autonomia, ajudar a superar as frustrações do dia a dia. Além de certo ponto, contudo, o narcisismo pode se tornar nocivo. Conforme observou o pesquisador Roy Lubit hámais de dez anos. indivíduos que sofrem de “narcisismo destrutivo" dão importância excessiva a si mesmos, são arrogantes e se orientam exagerada mente para a conquista de poder e riqueza. Muitas empresas cultivam e cultuam tais tipos. Elas podem, porém, pagar um alto preço por isso. Narcisistas podem ser caprichosos, egoístas, instáveis, tóxicos e chatos, muito chatos.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Thomaz Wood Jr.
16.10.2011 18:13
PENSAR DÓI?
Em texto publicado no New York Times, Neal Gabler, da Universidade do Sul da Califórnia, argumenta que vivemos em uma sociedade na qual ter informações tornou-se mais importante do que pensar: uma era pós-ideias. Gabler é o autor, entre outras obras, de Vida, o Filme (Companhia das Letras), no qual afirma que, durante décadas de bombardeio pelos meios de comunicação, a distinção entre ficção e realidade foi sendo abolida. O livro tem o significativo subtítulo: Como o entretenimento conquistou a realidade.
No texto atual, Gabler troca o foco do entretenimento para a informação. Seu ponto de partida é uma constatação desconcertante: vivemos em uma sociedade vazia de grandes ideias, leia-se, conceitos e teorias influentes, capazes de mudar nossa maneira de ver o mundo. De fato, é paradoxal verificar que nossa era, com seus gigantescos aparatos de pesquisa e desenvolvimento, o acesso facilitado a informações, os recursos maciços investidos em inovação e centenas de publicações científicas, não seja capaz de gerar ideias revolucionárias, como aquelas desenvolvidas em outros tempos por Einstein, Freud e Marx.
Não somos menos inteligentes do que nossos ancestrais. A razão para a esqualidez de nossas ideias, segundo o autor, é que vivemos em um mundo no qual ideias que não podem ser rapidamente transformadas em negócios e lucros são relegadas às margens. Tal condição é acompanhada pelo declínio dos ideais iluministas – o primado da razão, da ciência e da lógica – e a ascensão da superstição, da fé e da ortodoxia. Nossos avanços tecnológicos são notáveis, porém estamos retrocedendo, trocando modos avançados de pensamento por modos primitivos.
Gabler critica o afastamento das universidades do mundo real, operando como grandes burocracias e valorizando o trabalho hiperespecializado em detrimento da ousadia. Critica também o culto da mídia por pseudoespecialistas, que defendem ideias pretensamente impactantes, porém inócuas.
No entanto, o autor aponta que a principal causa da debilidade das nossas ideias é o excesso de informações. Antes, nós coletávamos informações para construir conhecimento. Procurávamos compreender o mundo. Hoje, graças à internet, temos acesso facilitado a qualquer informação, de qualquer fonte, em qualquer parte do planeta. Colocamos a informação acima do conhecimento. Temos acesso a tantas informações que não temos tempo para processá-las.
Assim, somos induzidos a fazer delas um uso meramente instrumental: nós as usamos para nos manter à tona, para preencher nossas reuniões profissionais e nossas relações pessoais. Estamos substituindo as antigas conversas, com seu encadeamento de ideias e sua construção de sentidos, por simples trocas de informações. Saber, ou possuir informação, tornou-se mais importante do que conhecer; mais importante porque tem mais valor, porque nos mantêm à tona, conectados em nossas infinitas redes de pseudorrelações.
As novas gerações estão adotando maciçamente as mídias sociais, fazendo delas sua forma primária de comunicação. Para Glaber, tais mídias fomentam hábitos mentais que são opostos àqueles necessários para gerar ideias. Elas substituem raciocínios lógicos e argumentos por fragmentos de comunicação e opiniões descompromissadas.
O mesmo fenômeno atinge as gerações mais velhas. Nas empresas, muitos executivos passam parte considerável de seu tempo captando fragmentos de notícias sobre mercados, concorrentes e clientes. Seu comportamento é o mesmo no mundo virtual e no mundo real: eles navegam pela internet como navegam por reuniões de negócios. Vivem a colher informações e distribuí-las, sem vontade ou tempo para analisá-las. Tornam-se máquinas de captação e reprodução. À noite, em casa, repetem o comportamento nas mídias sociais. Seguem a vida dos amigos e dos amigos dos amigos; comunicam-se por uma orgia de imagens e frases curtas, signos cheios de significado e vazios de sentido.
O futuro aponta para a disponibilidade cada vez maior de informações. A consequência para a sociedade, segundo Gabler, é a desvalorização das ideias, dos pensadores e da ciência. A considerar a velocidade com que livros e outros textos estão sendo digitalizados e disponibilizados na internet, estamos no limiar de ter todas as informações existentes no mundo ao nosso dispor. O problema é que, quando chegarmos lá, não haverá mais ninguém para pensar a respeito delas.
Pode-se acusar o ensaísta de nostalgia infundada ou ludismo. Porém, ele não está só. Felizmente, há sempre um grupo de livres pensadores a se colocar contra o conformismo massacrante das modas tecnológicas e comportamentais, nesta e em outras eras.

Carta Capital nº668
http://www.cartacapital.com.br/blog/politica/pensar-doi/?autor=14

Dino Sapiens

A etimologia da palavra Dino remete ao grego déinos, terrivelmente grande.
Sapiens aqui refere-se ao Homo Sapiens (homem sábio, em latim), do qual nós, seres humanos, primatas bípedes, descendemos. Há controvérsias (quanto ao sábio, é claro)....
A crise de conhecimento e a arrogância da desinformação em uma era rasa de hipervisibilidade me motivou a reproduzir artigos que acho interessantes; mesmo que não tenha espaço nos dias de hoje, a sabedoria ainda é grande e deve ser compartilhada e debatida.